Homenagem póstuma ao Velho da Onça

O Velho da Onça alimentando um esquilo

Esta é a história de um homem honesto a toda prova, possuidor de uma coragem imbatível e de uma sinceridade ofensiva. Um homem de trato rude, mas com um coração enorme. Um trabalhador incansável que não media esforços para ajudar aqueles a quem amava.

Sandoval Simões nasceu em 1932 na região de Araçatuba, interior de São Paulo. Filho de Alberto Simões e Jeronima Sandoval, colonos de fazendeiros da região, teve uma infância sofrida ao lado de quatro irmãos e duas irmãs. Desde os sete anos de idade já trabalhava na roça para ajudar os pais. Cultivando terras alheias desde menino, seu sonho era ter seu pedacinho de chão para dele tirar  o  pão de cada dia.

Por questões sócio-econômicas veio para São Paulo na juventude onde se casou e constituiu família. Ainda tentou, nos anos 60, a vida na agricultura. Tornou-se “meeiro” de um pedaço de chão em Salto onde permaneceu por quatro anos. Foram quatro anos de prejuízos, onde somente o dono das terras lucrou. Neste ínterim sua esposa, Lourdes, ficou doente e isso o obrigou a vir para São Paulo definitivamente. Em São Paulo criou os filhos e viu os netos crescerem, mas ele gostava mesmo é da vida junto à natureza. Adorava o cheiro de terra molhada e o ser acordado com o canto dos pássaros pela manhã.

Entrada do sitio

Carinhosamente chamado pelos vizinhos de Velho da Onça, meu pai era um naturalista e ecologista. Viveu os últimos anos de sua vida em seu sitio na Mata Atlântica em Tapiraí, um município de pouco mais de 10.000 habitantes, distante 170 km de São Paulo. Seu apelido se deu por conta de termos escolhido não devastar as árvores de sua propriedade de aproximadamente cinco alqueires. Sua casa ficava quase no meio da propriedade onde, fizemos na época (mais de 20 anos atrás) uma enorme clareira onde tinha sua lavoura de milho, mandioca, feijão e algumas árvores frutíferas. Era muito comum ouvir rugidos de onça na região. Por vezes avistamos oncinhas e outros animais silvestres atravessando a estrada. A região é hoje tombada como Área de Proteção Ambiental (APA), no entanto quando compramos a propriedade há aproximadamente 30 anos atrás nem se falava em Meio Ambiente ou Ecologia neste país. Todos os vizinhos devastaram suas árvores, mas nós preferimos mantê-las para que a fauna não fosse embora.

Os esquilos adoram sementes de girassol

Meu pai sempre foi apaixonado pela natureza. Gostava da fauna e adorava trabalhar na terra. Seu sonho desde muito tempo era ter um pedaço de terra para cultivar. Nasceu em área rural, cresceu junto às lavouras, apreciando desde cedo as maravilhas da natureza.  Trabalhando duro em São Paulo, foi construindo aos poucos sua casa na propriedade rural, sempre com o cuidado de não ofender de nenhuma forma a fauna e a flora da região. Antes de poder construir a casa, acampamos muitas vezes no meio da propriedade. Passávamos privações de todo conforto, mas para meu pai aquilo era o máximo.

Sandoval com o neto Mikhael

Embora meio esquentado do tipo que não leva “desaforos para casa” e que não tolerava injustiças e nem engodos, Sandoval Simões tinha um coração muito bom. Lembro-me ainda de preciosas lições de vida recebidas dele quando eu era ainda uma criança. Ele tinha profundo apego à família, principalmente aos filhos e netos, mas tinha dificuldade em externar esses sentimentos. Não teve oportunidade de estudar, mas lutou para que todos os seus filhos tivessem acesso à vida escolar e todos os quatro se formaram, sendo que sua filha  caçula recentemente concluiu doutorado em Física.

Sandoval parecia ser do tipo durão, briguento, mas quem o conhecia bem, sabia que tinha um “coração de manteiga”.

Por incrível que possa parecer para quem lê este texto, em toda a minha vida, me lembro de duas ou três vezes que meu pai comprou uma roupa para si mesmo. Uma dessas vezes foi para o meu casamento, quando ele comprou um terno e uma camisa e também comprou o meu terno. Ele absolutamente não comprava roupas. Meu pai usava somente roupas usadas que ganhava de um de seus irmãos e amigos ou raramente quando minha mãe, eu ou minhas irmãs lhe presenteava com alguma roupa nova. Ele simplesmente se recusava a receber presentes que custassem algum dinheiro. Seu estilo de vida simples me faz lembrar as palavras de Jesus, quando compara nossas vidas com os lírios do campo. Nunca faltou ao meu pai roupas. Seu guarda-roupa estava sempre cheio. Isso não é incrível?

Fred, um dos papagaios

Meu pai proibiu a caça em sua propriedade. Aves como jacus, jacutingas, juritis comiam em seu quintal. Havia um bando de esquilos selvagens que comiam sementes de girassol em sua mão. Tinha dois papagaios, muitas galinhas, cães e gatos, sendo que a gata Kero-kero era o seu maior xodó. Kero-kero o seguia por todos os lados como se fosse um cãozinho. Pouco antes de sua morte, resgatou e criava um filhote de tucano que caiu do ninho no alto de um coqueiro. Meu pai era totalmente desprovido de luxo. Um homem absolutamente simples. Em sua humilde casa tinha apenas o básico para a vida.

Por ser um homem prático, por muitos anos fugiu da vida de fé. Implicava comigo e com minhas irmãs quando o convidávamos a ir à igreja. No entanto, quando estava construindo sua casa em Diadema, na Grande São Paulo na década de 90, secretamente o ouvi repreender um pedreiro que zombava da fé.  “Os que seguem a Jesus estão certos. Eu não o sigo ainda, mas o seguirei um dia!” afirmou meu pai. Ele sabia que o ser humano, por melhor que seja aqui, precisa de Deus. Tinha consciência de que lhe faltava algo para o descanso do coração e para a plena paz.

Com os netos Mikhael, Gabriel e Benjamin

O tempo se passou e depois de 20 anos de nossas orações e após um gravíssimo acidente de carro, no qual por um milagre não morreu e nem ficou paraplégico, meu pai se converteu e pediu para ser batizado nas águas.

O leão se transformou em cordeiro!

Se já tinha um bom senso de justiça, agora isso foi aguçado e multiplicado por mil. Passou a ser um homem de fé. Dedicava-se à oração por todos os familiares, parentes e amigos. Sempre tinha uma palavra de consolo e bom ânimo. Quando ligávamos para ele, a resposta era: “Estou orando por você!” Meu pai era meu amigo verdadeiro. Não somente meu, mas de muitos. Hoje a palavra “amigo” está descaracterizada de seu sentido verdadeiro. Com quantos amigos de verdade você pode contar a qualquer hora do dia ou da noite? Você os conta em uma só mão?  Eu sim.

Família reunida era motivo de festa...

O Velho da Onça estava ajudando na construção de um templo batista próximo de seu sitio. Estava morando em tempo integral na casa do sítio desde que se aposentou há alguns anos. Construiu tudo com esforço e dedicação. Sua alegria era receber visitas e oferecer produtos de sua própria produção. Eu e  Rosa, minha esposa, estivemos com ele dias 24 e 25 de janeiro de 2009. Foi nossa despedida. O velho da Onça foi assassinado dentro de sua casa com um tiro na cabeça no início de fevereiro de 2009. Seu corpo foi encontrado pelo caseiro alguns dias após sua morte. Segundo a polícia, provavelmente o homicídio foi praticado por algum viciado em drogas que procurava dinheiro fácil. O Velho da Onça deixou imensa saudade na família, nos parentes, nos amigos e, diga-se de passagem, em uma infinidade de animais silvestres que eram alimentados por sua mão.

... uma grande festa!

Não descartando o aspecto espiritual deste blog, quero agora lembrar que o lema do mesmo é “Denunciando o conformismo ativo”. Algumas pessoas têm me  perguntado o que quero dizer com “Conformismo Ativo”.  Ainda escreverei um post detalhando esse termo, mas por enquanto, este é um claríssimo exemplo de conformismo ativo: Se o Velho da Onça fosse um homem ilustre o fato teria sido matéria nas principais mídias do país e do mundo, mas como meu pai era um anônimo, ninguém ficou sabendo de nada. Ninguém se importou. Ninguém “moveu uma palha” para elucidar os fatos. A polícia local, representada pela Delegacia de Polícia de Tapiraí e pela Delegacia de Polícia de Piedade, nos mostrou a mais explícita negligência nas investigações do caso. Um desrespeito ultrajante. Sentimos negligência desde a perícia técnica até o laudo do IML que não detectou a data da morte. Para completar o quadro de incompetência da administração pública, o Iprem, Instituto de Previdência Municipal de São Paulo, responsável pela aposentadoria dos servidores da Prefeitura da Cidade de São Paulo, até a presente data não pagou a aposentadoria de minha mãe, alegando que precisa da data exata da morte de meu pai no atestado de óbito. Por não saberem se a morte ocorreu dia 2 ou dia 3 de fevereiro, não pagam a aposentadoria nunca. Meu pai foi funcionário da Prefeitura do Município de São Paulo por muitos anos. A atitude do Iprem é um descaso total. Uma falta de respeito que chega a ofender. Desta forma nos chamam de burros! Esta é, claramente, uma das facetas do “Conformismo Ativo”: Entidades, órgãos públicos, políticos e profissionais fingindo que trabalham quando não fazem absolutamente nada. Não há interesse pelo próximo, não há sensibilidade, não há amor e nem dignidade. Não fazem o que são pagos para fazer. Advogam em causa própria. Só enxergam o seu umbigo. Este problema está em todos os nichos da sociedade brasileira. Há viciados em drogas porque há traficantes. Há traficantes porque há alguns políticos corruptos coniventes. Mas será que teríamos políticos corruptos se, como povo, não fôssemos tão egoístas? Será que teríamos políticos corruptos se a “Lei de Gerson” não fizesse parte de nossa cultura? Parece-me que o problema está dentro de cada ser humano.

No pomar

Quando João Batista apareceu no Jordão anunciando que Jesus viria, disse enfaticamente: “Arrependei-vos porque é chegado o reino dos céus” (Mateus 3:2). “E a multidão o interrogava, dizendo: Que faremos, pois? E, respondendo ele, disse-lhes: Quem tiver duas túnicas, reparta com quem não tem, e quem tiver alimentos, faça da mesma maneira. E chegaram também uns publicanos, para serem batizados, e disseram-lhe: Mestre, que devemos fazer? E ele lhes disse: Não peçais mais do que o que vos está ordenado. E uns soldados o interrogaram também, dizendo: E nós que faremos? E ele lhes disse: A ninguém trateis mal nem defraudeis, e contentai-vos com o vosso soldo.” (Lucas 3:10-14)
Parece-me que a resposta de João, resumidamente, foi: Estejam satisfeitos. Sejam agradecidos. Sejam justos!

A família Simões perdeu um grande amigo aqui na terra. Mas, por mais que tenhamos sofrido, sabemos que cada dia é morto em nosso país um “Velho da Onça”. Todos os dias a corrupção gera mortes direta ou indiretamente.

Nós somos consolados ao crer que o Velho da Onça foi para os braços do Senhor Jesus a quem amava. Não foi o primeiro a morrer injustamente. Isso ocorre todos os dias em nosso país.

Kero-kero hoje mora conosco em São Paulo

A vida pode ser uma linda viajem, mas, como diz um amigo meu, “Tome cuidado, pois você pode estar levando um lobisomem na bagagem.”.
A corrupção só não achará morada no coração de quem sabe amar de verdade.

Imaginem o paraíso que o Brasil seria se apenas as orientações de João Batista fossem respeitadas. Talvez não consigamos acabar com a corrupção do país, mas quem sabe poderemos diminuir a corrupção dentro de nós mesmos e assim conseguir olhar para o próximo com verdadeiro respeito. Como dizia Gil Gomes em seu programa de rádio, “Cidade sem cortinas” , há muitos anos atrás: “Você poderá não mudar o mundo, mas haverá um canalha a menos na face da terra”.

Daril Simões

9 thoughts on “Homenagem póstuma ao Velho da Onça

  1. E com dor no coraçao e muita tristeza e saudade de alguém que nunca mais verei, que deixo meu sentimentos e minha revolta aqui,por perder pessoas que amamos em um pais sem justica e com grande descaso pelas vidas. As vezes penso que chamar certas pessoas de animal é uma ofensa aos animais; o que conforta é saber que um dia nos veremos e encontraremos outra vez. As vezes penso que se estou tão indignada com o sistema de vida e justiça deste mundo da forma de vida, do atropelo dos seres humanos, de ver tanta maldades sem limites, e tantos que poderiam fazer algo para frear tantos absurdo e simplesmente não fazem, penso como Deus olha pra isso, como Deus ve isso…Penso que muitas vezes “Ele” vira as costas para não consumir tudo isso em minutos e por ver alguns justos na terra que ainda crer e orar por uma reforma e por trasnformacao de moralidade de conduta em autoridade, por amor a esses justos que ainda crer e orar, essa terra não foi destruida. O que podemos dizer a esse Senhor, SANDOVAL SIMÕES? ao qual eu tive o previlegio de conhecer até pode viver no anonimato e morrer em anonimato prá muitos, mas prá nos que o conhecemos sabemos o valor desta vida, dizemos a ele “até breve, descansa em paz, porque prá onde voce foi, ai sim! Voce será reconhecido e respeitado, e prá nos que ficamos, seguimos acreditado em um Deus que tudo vê e tudo pode e que “justica seja feita”. – Amiga da Familia, Angelita Batista (Ne)

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    • Angelita obrigado pelas palavras verdadeiras. Sei que você entende bem o que passamos porque a pouco tempo também teve seu irmão covardemente assassinado neste país sem ordem e sem justiça. Teu irmão, o Nano, foi muito meu amigo. Eu conhecí vocês com 14 anos de idade. Senti muito a passagem dele. Mas ele agora está com o Pai Celestial e nós que aqui ficamos devemos tentar salvar mais alguns antes que a grande ira de Deus se derrame sobre este país sem cortinas e venha uma grande destruição pelos pecados tão escancarados que aqui se vê: Violência, corrupção desenfreada em todos os níveis da sociedade, crescente legalização do erro. Isso aqui tá virando uma Sodoma. Com certeza não demora a cair fogo do céu.
      Com relação ao seu irmão, descanse em Deus. Deus ainda tem o controle de tudo, mesmo quando parece que não. Espero que você e sua família estejam melhor aí nos EUA do que nós aqui no Brasil.
      Mais uma vez obrigado.
      Um abraço,
      Daril

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  2. Parabéns pelas considerações que faz ao seu saudoso pai. Aliás é mandamento do Mestre, amar pai e mãe. Paz de Cristo, homem de Deus. Também espero no Reino de Deus; Toni Silva.

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  3. Quando as saudades dele aperta muito, me rendo a fazer algo fora da lógica cristã adulta da maioria: eu digo a Deus: Senhor fala hoje pra ele que to com muitas saudades.

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  4. Conheci este homem e sempre foi gentil e doce comigo, essas palavras aqui ditas são a mais pura realidade, e por isso aqui esta tb minha homenagem a ele que convivi por algum tempo, e sua familia a qual amo todos.

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